terça-feira, outubro 30, 2007

Eu aqui...

Dançamos sob o mesmo som,
eu aqui e ele lá.
solidão e glória,
como se fosse minha
a história de algum poeta maldito
e só depois do esquecimento,
finalmente
ele me enlaçaria em pleno bailar
eu, branca e bela.
ele, arrebatador.
Do meu naufrágio na dor,
restaria apenas
uma leve frialdade
porém, breve
apagada com seus beijos
e a tenaz carícia
queimando-me em doce fadiga
nesta noite de primavera.


Imagem: Bouquereau

sexta-feira, outubro 26, 2007

Dia de nascer


Um poeta disse que se morre todo dia.
Eu, entretanto, diria,
que há nascimentos tantos,
em inesperado dia,
ainda que idêntico aos outros,
mas feito azul por um gesto
quando um vento suave faz do sorriso,
um beijo
e das palavras, arquejo.
quando a paixão, há tanto guardada,
quebra o espelho, desfaz a guarda,
irrompe feito mar
e seus arroubos de se altear
ora pégaso, ora plácido
e esse desejo de se deitar
em ondas, em ondas...
É dia de nascer
e amar.

Imagem: Rodin

quarta-feira, outubro 24, 2007

Do entrelaçar


Não me entretem outra fome
senão me tingir do amor que guardas,
ser tua perigosa dama tecendo horizontes e
enredar-te as veias no meu sangue.
Não te perderás, não tema.
Se algum pedaço tomar de ti,
será talvez o rumo do breu,
se te perderes naquilo
que tua mão, em mim, desenha.
Se depositar em ti meus mais loucos desejos,
serão líquidos de fogo e mel,
marcando-te, para sempre,
com translúcidas auroras
a apaziguar tua pele.
Eu te amo e cada pedaço de mim
quer se misturar a todo pedaço teu.

Imagem: Sondra Wampler

domingo, outubro 21, 2007

Embriaguês


Agora que habitas a memória de minha carne,
sei dos frutos todos que a ti darei
e dos céus de onde nos perderemos para sempre.
Nada importa,
nem a calma aflitiva que em mim dormia.

Agora que rabisquei as vãs certezas
dos meus dias e sobre elas escrevi teu nome,
o mais doce mel de todas as doces palavras,
contigo arderei em abismo e embriaguês.

Agora que tu me amas,
sei que antes de ti, eu não vivia.

quinta-feira, outubro 18, 2007

Memória

sempre esqueço a senha,
a data, o nome da música,
sempre me perco nas ruas.
sempre perco a hora e as chaves.
sempre esqueço abertas, as portas.

por outro lado,
(como dizem os advogados,
os sabe-tudo,
e os renomados solitários)

nunca te esqueço,
nem do dia em que nascemos juntos.
nunca esqueço dos pecados disfarçados.
nunca esqueço dos encontros marcados.

Se perco as chaves, tu sabes,
é que não conheço grades,
senão das minhas mãos nas suas.

Imagem: M. Ellen Cocose

Convido-os a ler um outro poema aqui.

segunda-feira, outubro 15, 2007

Chuva


"Ah! Se tu estivesses aqui, agora,
Nem que fosse uma meia-hora"
Silvio Spersivo


A chuva soltou sua melodia suavizando o dia.
Só minha saudade não encontra
onde pousar os olhos
senão em sua ausência que me ofusca,
sol amarelo sob a chuva.

E me consumo em angústias vertiginosas,
enquanto a chuva se desata lá fora em tumulto.
Um violão aqui dentro canta abismos,
os elementos e os sons em sonora trama
de aprofundar a tristeza de não tê-lo.

As nuvens levam meus olhos, como em aquarela.
As folhas se soltam e levam meus olhos
a se perder lá longe, acumulando esperanças.
Mais que um tempo, há uma eternidade na espera
Mais que uma ausência, há você, presente em tudo.

(e já nem sei se me umedece a lágrima ou látego da chuva.)

quinta-feira, outubro 11, 2007

Compasso

Ando em lonjuras bem aqui dentro.
Erro o trejeito, desaprendo.
Passo da hora.
Ando no vento, aqui, lá,
bem lá, além.

É sina, ou o laço em
tornozelo de bailarina
que prende em cor, o passo?

O que sei, além deste alento
que ergue o chão, sem rede ou cerca
e do íntimo som de quem, como resposta,
só sabe da própria sede?

O que sei, além do som dos seus passos?

Imagem: Janet Treby

segunda-feira, outubro 08, 2007

Dos espelhos vermelhos


Em uma sala de espelhos,
a música vermelha a me envolver,
e a suavidade lupina das horas
que me mantêm acordada.
Sonho e mais se abrem meus olhos neste sonhar.
Sonho com látegos e chuvas de germinar.
Em meus espelhos, plena e pronta,
todos os vermelhos véus prevêem
tuas mãos sonhando sobre eles,
e a tensa suavidade do teu arranhar.
Sonho com teus beijos
e o alimento profano com que me acendes,
fogo líquido, com que me lavas a boca.
E se mais sonhos houvera, seria de seguir te amando,
como o sol constrói as estações.
Deitada sobre a noite, seguir te amando
até a mais distante aurora,
sempre e mais tua do que sonhara.

Imagem: Shane Wilson


sexta-feira, outubro 05, 2007

Coragem


Esqueci as farpas em torno do meu coração e
as paredes marcadas de vermelho do meu esmalte.
Esqueci as frágeis ilusões, suas festas e as luzes
cúmplices dos meus cantos escuros.

Esqueci a cena, a melodia de tanta voz a me ensurdecer
e depois da cortina, a voraz boca, de veneno e dor.

Nada mais sei de bancos vazios, do tempo e do frio,
do gelo e da flor cansados de esperar, sobre a mesa.
Esqueci a ilusória redenção de não mais querer
e a solidão e o vazio.

Esqueci as lágrimas, último traço de antigo pintor.
Tudo esqueci,
outra de minhas várias coragens,
diante deste dourado ouro, o seu amor.
Saramar

terça-feira, outubro 02, 2007

Idílio

Os dias longos pesando sobre o relógio
e as horas, em seu infinito sono, tentam deter
o que não obedece o tempo dos homens.
Lá fora de mim, um mundo
e seus espantos tentam prender
o que não esmorece com muros.
Inutilmente.
Se ando sob a chuva
e um perfume me envolve,
é dos meus pés molhados
que sabem agora,
das raízes do mais fundo chão,
onde nascem flores.
Se dentro do vento
há murmúrios de antigas palavras,
um canto, uma promessa de amor,
desfaço o torpor das horas
e traço outras trilhas,
tornando em fina linha de mil augúrios,
o anterior vazio onde sozinhos,
miravam-se, em agústias de só ser,
os meus sonhos e os seus.

Imagem: Pablo Picasso