segunda-feira, abril 28, 2008

Abre aspas


Blogagem coletiva organizada por Lunna Guedes


É lugar comum falar do mestre, um clássico. Porém, envolvida que vivo com Adriano e, em vista deste inesquecível lamento de dor diante da morte do ser mais amado, peço licença para homenagear o grande Fernando Pessoa, com este trecho de:


ANTÍNOO


Era em Adriano fria a chuva fora

Jaz morto o jovem
No raso leito, e sobre o seu desnudo todo,
Aos olhos de Adriano, cuja cor é medo,
A umbrosa luz do eclipse-morte era difusa

Jaz morto o jovem, e o dia semelhava noite lá fora
A chuva cai como um exausto alarme
Da Natureza em acto de matá-lo.
Memória do que el´ foi não dava já deleite,
Deleite no que el´ foi era morto e indistinto.

Oh mãos que já apertaram as de Adriano quentes,
Cuja frieza agora as sente frias!
Oh cabelo antes preso p´lo penteado justo!
Oh olhos algo inquietantemente ousados!
Oh simples macho corpo feminino
qual o aparentar-se um Deus à humanidade!
Oh lábios cujo abrir vermelho titilava
os sítios da luxúria com tanta arte viva!
Oh dedos que hábeis eram no de não ser dito!
Oh língua que na língua o sangue audaz tornava!
Oh regência total do entronizado cio
Na suspensão dispersa da consciência em fúria!
Estas coisas que não mais serão.
A chuva é silenciosa, e o Imperador descai ao pé do leito.
A sua dor é fúria,
Porque levam os deuses a vida que dão
e a beleza destroem que fizeram viva.
Chora e sabe que as épocas futuras o fitam do âmago do vir a ser;
O seu amor está num palco universal;
Mil olhos não nascidos choram-lhe a miséria.

Antínoo é morto, é morto para sempre,
É morto para sempre, e os amor´s todos gemem.
A própria Vénus, que de Adónis foi amante,
Ao vê-lo então revivo, ora morto de novo,
Empresta renovada a sua antiga mágoa
Para que seja unida à dor de Adriano.

Agora Apolo é triste porque o roubador
Do corpo branco seu ´stá para sempre frio.
Não beijos cuidadosos na mamílea ponta
Sobre o pulsar silente lhe restauram
Sua vida que abra os olhos e a presença sinta
Dela por veias ter o reduto do amor.
Nenhum de seu calor, calor alheio exige.
Agora as suas mãos não mais sob a cabeça
Atadas, dando tudo menos mãos,
Ao projectado corpo mãos imploram.

A chuva cai, e el´ jaz
como alguém que de seu amor ´squeceu todos os gestos
E jaz desperto à espera que regressem quentes.
Suas artes e brincos ora são c´o a Morte.
Humano gelo é este sem calor que o mova;
Estas cinzas de um lume não chama há que acenda.

Que ora será, Adriano, a tua vida fria ?
Quão vale ser senhor dos homens e das coisas ?
Sobre o teu império a ausência dele desce como a noite.
Nem há manhã na esp´rança de um deleite novo;
Ora de amor e beijos viúvas são as tuas noites;
Ora os dias privados de a noite esperar;
Ora os teus lábios não têm fito em gozos,
Dados ao nome só que a Morte casa
À solidão e à mágoa e ao temor

Tuas mãos tacteiam vagas alegria em fuga
Ouvir que a chuva cessa ergue-te a cabeça,
E o teu relance pousa no amorável jovem.
Desnudo el´ jaz no memorado leito;
Por sua própria mão el´ descoberto jaz.
Aí saciar cumpria-lhe teu senso frouxo,
Insaciá-lo, mais saciando-o, irritá-lo
Com nova insaciedade até sangrar teu senso.

Suas boca e mãos os jogos de repôr sabiam
Desejos que seguir te doía a exausta espinha.
Às vezes parecia-te vazio tudo
A cada novo arranco de chupado cio.
Então novos caprichos convocava ainda
À de teus nervos, carne, e tombavas, tremias
Nos teus coxins, o imo sentido aquietado.

...

E de pensar, essa luxúria que é
memória de luxúria revive e toma-Lhe os sentidos p´la mão,
desperta a carne ao toque,
E tudo é outra vez o que era dantes.
No leito o corpo morto se soergue e vive
E vem com el´ deitar-se, junto, muito junto,
E uma invisível mão e rastejante e sábia
A cada uma do corpo entrada da luxúria
Vai murmurar carícias que se esvaem, mas
Se demoram que sangre a derradeira fibra.
Oh doces, cruéis da Párthia fugitivas!

Assim um pouco se ergue, olhando o amante
Que ora não pode amar senão o que se ignora.
Vagamente, mal vendo o que comtempla tanto,
Perpassa os frios lábios pelo corpo todo.
E tão de gelo insensos são os seus lábios que, ai!
Mal à morte lhe sabe o frio do cadáver,
E é qual mortos ou vivos que ambos foram
E amar inda é presença e é motor.
Na dos do outro incúria fria os lábios param
O hálito ausente aí recorda-lhe a seus lábios
Que de pra lá dos deuses uma névoa veio
Entre ele e o jovem. Mas as pontas de seus dedos,
Ainda ociosas perscrutando o corpo, aguardam
Uma reacção da carne ao despertante jeito.
Mas não é compreendida essa de amor pergunta:
É morto o deus que era seu culto o ser beijado!

Levanta a mão pra onde o céu estaria
E pede aos deuses mudos que sua dor lhe saibam.
Que a súplica lhe atendam vossas faces calmas,
Oh poder´s outorgantes! Dá em troca o reino
Nos desertos quietos viverá sequioso,
Nos longes trilhos bárbaros mendigo ou escravo,
Mas a seus braços quente o jovem devolvei!
Renunciai ao espaço que entendeis seu túmulo!

Tomai da terra a graça feminina toda
E num lixo de morte o que restar vertei!
Mas, pelo doce Ganímedes, distinguido
Por Jove acima de Hebe para encher-lhe
A taça nos festins e pra instilar
O amor de amigos que enche o vácuo do outro,
O nó de amplexos femininos resolvei
Em poeira, oh pai dos deuses, mas poupai o jovem
E o alvo corpo e o seu cabelo de oiro!
Ganímedes melhor talvez tu pressentiste
Seria acaso, e por inveja essa beleza
Dos braços de Adriano para os teus roubaste.

Era um gato brincando co´a luxúria,
A de Adriano e a sua própria, às vezes um
E às vezes dois, ora se unindo, ora afastado;
A luxúria largando, ora o àpice adiando;
Ora fitando-a não de frente mas de viés
Ladeando o sexo que semi não espera;
Ora suave empolgado, ora agarrando em fúria,
Ora brinca brincando, agora a sério, ora
Ao lado da luxúria olhando-a, agora espiando
O modo de tomá-la no aparar da sua.

Assim as horas se iam das mãos dadas de ambos,
E das confusas pernas momentos resvalam.
Seus braços folhar mortas, ou cintas de ferro;
Agora os lábios taças, agora o que liba;
Olhos fechados por de mais, de mais fitantes;
Ora o vai-vém frenético operando;
Ora suas artes pluma, ora um chicote.

Viveram esse amor como religião
Oferta a deuses que, em pessoa, aos homens descem.
Às vezes adornado, ou feito enfiar
Meias vestes, então numa nudez de estátua
Imitava algum deus que de homem ser parece
Pela do mármore virtude exacta.
Agora Vénus era, alva dos mar´s saindo:
E agora Apolo ele era, jovem e dourado;
E agora Júpiter julgando em troça
A presença a seus pés do escravizado amante;
Agora agido de rito, por alguém seguido,
Em mistérios que são sempre repostos.

Agora é algo que qualquer ser pode.
Oh, crua negação da coisa que é!
Oh de aurea coma sedução fria de lua!
Fria de mais! De mais! E amor como ela frio!
O amor pelas memórias do amor seu vagueia
Como num labirinto, alegre, louco, triste,
E ora clama o seu nome e lhe pede que venha,
E ora sorrindo está à sua imagem-vinda
Que está no coração quais rostos na penumbra,
Meras luzentes sombras das formas que tinham...

...

Erguer-te-ei uma estátua que será
Prova, para o contínuo das futuras eras,
Do meu amor, tua beleza e do sentido
Que à divindade p´la beleza é dado.
Que a Morte com subtis mãos desnudantes tire
A nosso amor as vestes do império e da vida,
Ainda a dele estátua que só tu inspiras,
As futuras iades, quer queiram, quer não,
Hão-de, qual dote por um deus imposto,
Inevitavelmente herdar.

...

Como o amante que agurada, assim ele ia de
Canto a canto do em dúvida confuso de espírito.
Ora sua esperança um grande intento era
De que o anseio fosse, ora ele cego se
Sentia algures no visto indefinido anseio.
Se o amor conhece a morte, que sentir se ignora.
Se a morte frustra amor, que saber não sabemos.
A dúvida esperava, ou duvidava a esp´rança;
Ora o de sonhar senso ao que sonhava anseio
Escarnecia e congelava em vácuo
De novo os deuses sopram a mortiça brasa.

A tua morte deu-me alta luxúria mais
Um carnal cio em raiva por eternidade.
No meu imperial fado a confiança ponho
Que os altos deuses, por quem César fui,
Não riscarão de vida mais real
Meu voto de que vivas para sempre e sejas
Na deles melhor terra uma carnal presença,
Amável mais, mais amorável não, pois lá
Não coisas impossíveis nossos votos jaçam
Nem corações nos ferem com a mudança e tempo.

Amor, amor, Oh, meu amor! Já és um Deus.
Minha esta ideia, que por voto eu tomo,
Voto não é, mas vista que me é permitida
Pelos grãos deuses, que amor amam e dar podem
A corações mortais, sob a forma de anseios,
De anseios que alvos têm indescobertos,
Uma visão reais coisas para além
De nossa vida em vida aprisionada, nosso sentido no sentido preso
Ai, o que anseio que tu sejas, és tu já.
Pois já o Olimpo o território tu pisaste e és perfeito, sendo tu embora
Pois excesso de ti não precisas vestir
Perfeito para ser, a perfeição que és.

...

Amor, meu amor-deus! Que eu beije, em frios teus
Lábios, teus quentes lábios imortais agora,
Saudando-te beato nos portais da Morte.
Pois que pra deuses são portais da Vida.

...

E aqui, memória ou estátua, ficaremos
O mesmo um só, qual de mãos dadas éramos
Nem as mãos se sentiam por sentir sentir.
Ver-me-ão os homens quando o que és entendam.
Podiam ir-se os deuses, no vasto rodar
Das curvas eras. Só por ti apenas,
Que, um deles, no ido bando houveras ido,
Viriam, qual dormissem, para despertar

...

E se a nossa memória a pó se reduzisse,
Uma divina raça do fim das idades
Nossa unidade dual ressuscitava.

Ainda chovia. Em leves passos veio a noite
Fechando as pálpebras cansadas dos sentidos.
A mesma consciência de eu e de alma
Tornou-se, qual paisagem vaga em chuva, vaga.
O Imperador imóvel jaz, e tanto que
Semiesqueceu onde ora jaz, ou de onde vem
A dor que era inda sal nos lábios seus.
Algo distante fora tudo: um manuscrito
Que se enrolou. E o que sentira a fímbria era
Que halo é em torno à lua quando a noite chora.

A cabeça pousava sobre os braços, estes
No baixo leito, alheios a senti-lo, estavam.
Os seus olhos fechados cria abertos, vendo
O nu chão negro, frio, triste, sem sentido.
Doer-lhe o respirar tudo era que sabia.
Do tombante negrume o vento ergueu-se
E tombou; lá no pátio ecoou uma voz;
E o Imperador dormia...
Os deuses vieram....
E algo levaram, qual não senso sabe,
Em braços de poder e de repouso invisos.
(poesia originalmente escrita em inglês, tradução de Jorge de Sena)

Pequena biografia
Fernando António Nogueira Pessoa, nasceu aos 13 de junho de 1888 em Lisboa. Em seguida à morte do pai, em 1893, sua mãe se casou, em 1895, por procuração com João Miguel Rosa, consul interino de Portugal em Durban, África do Sul, para onde vai a família em 1896. Ali Fernando Pessoa fez os seus primeiros estudos. Devido a esse fato, o inglês converteu-se em sua segunda língua, que utilizou para escrever diversos poemas.
Em 1905 Fernando Pessoa retornou a Lisboa, para se matricular no Curso Superior de Letras, que abandonou um ano depois, motivado por uma greve de estudantes. Em 1907, fundou uma tipografia, que teve vida curta e, em 1908 iniciou sua atividade como "correspondente estrangeiro".
Em 1913 escreveu a poesia "Pauis" e, em 1914 os primeiros poemas de seus heterônimos, Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Em 1915 são publicados dois números da revista "Orpheu" e, em 1917 o único número da revista "Portugal Futurista". Em 1920 conheceu Ofélia, a quem destinou as suas "Cartas de Amor".
Em 1921 Fernando Pessoa publicou os seus "English Poems", e teve início a publicação da revista "Contemporânea", onde Fernando Pessoa colaborou. Entre 1924 e 1925 foram publicados os cinco números da revista "Athena", dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz.
Em 1927, em Coimbra, iniciou-se a publicação da revista "Presença", na qual Fernando Pessoa colaborou. Em 1932 requereu, em concurso de títulos, o cargo de conservador-bibliotecário do Museu-Biblioteca do Conde de Castro e Guimarães, em Cascais, sem sucesso. Em 1934 aparece a "Mensagem", que recebe um prêmio do Secretariado de Propaganda Nacional.
Em 30 de novembro de 1935, vem a falecer no Hospital de São Luís dos Franceses, devido a complicações hepáticas.

terça-feira, abril 22, 2008

Tivessem asas, as palavras

"o seu amor reluz que nem estrela,
asa do meu destino..."
Djavan


Tivessem asas, as palavras
e não se amarrassem
à ancora da solidão
se não lhes pesassem os pedaços,
frágeis destroços de sonhos
de todo o amor naufragado.

Se não pesassem as palavras
sob a fome da dor
perdidas do seu alimento,
o canto de amor silenciado,
morto.

Tivessem asas, as palavras
depois de marítimo vôo,
desfeita a agonia
em céu de música e luz,
de mímicas aventureiras,
soltas, as palavras, e leves
pousariam calmas em teu peito,
enfim porto.

Imagem: Kollembaum

quarta-feira, abril 16, 2008

Desalinho


"A esperança está viva, a vida está certa:
guarda a minha mão, guardarei a tua."
Alexandre O'Neill
Vê amor,
a vida se esgarça em fios lentos
o meu tempo, o teu
em desalinho, precipício
já não sei onde piso,
mas ainda te pertenço
ventre, mãos, olhos desfeitos
de tanto exílio.

Vê amor,
que outras palavras diria
se soubesse o que mais dizer
além do que tua alma pressente?
Que dialeto haverá, novo
de dúvidas outras e belas?
(o pulsar da cor em teus olhos talvez,
quando o sol nos encontrar,
de felicidade, despertos).
Quanto de minhas veias hei de abrir
para que fluas em mim,
vida enfim?

(à ausência da flor levíssima do teu amor
desvaneço-me, extinta).

Imagem: Haleh Bryan

domingo, abril 13, 2008

AINDA AMO VOCÊ


Amo, ainda.
Mais, se possível fosse.
Amo as noites escuras de dor e silêncio
Quando sua boca deixou a minha
E tentou outros sabores.
Amo as dores
que minha alma provou
na solidão de não estar.
Amo as pedras que rolaram
sob nosso amor selvagem
e o riso dos pássaros que
se fartaram de nosso mel.
Amo até sua ausência
porque dela assomam
os mínimos carinhos e
as carícias inimagináveis
que seu amor inventava
para agradar o meu.

quinta-feira, abril 10, 2008

Lamento de outono


Não vês que sequer me queixo
e, ao contrário dos poetas,
finjo ser feliz,
enceno o que não sinto?

Não vês que cortei os dedos
esvaindo, palavra por palavra,
a carta de amor que não irias ler,
ainda que breve?

Não vês que vivo em sombras,
em prenúncio de ventos,
ainda que o fogo antigo do teu carinho
afaste o frio,
até quando, até quando?

Não vês que ainda te amo?

Imagem: Bouquereau

sábado, abril 05, 2008

Infinitos


Desde o passado, em mim, vivias.
O que sempre imaginara vida,
agora sei,
foi a saudade de ti
que eu ainda não sabia.
Minha alma te esperava.
Tornaste possível a eternidade
(sonho dos deuses)
trocaste o nunca e o futuro dos amores
(quase sempre a solidão)
por tua permanência.
Antes mesmo que em mim, vivesses,
de ti, antes, sempre fui
ainda que apenas um murmúrio
de vento anunciasse teu existir.
Tua, entre os tempos,
em infinitos, ando pela vida.

Imagem: Da Vinci