domingo, abril 30, 2006

Meu pai


Há um ano, no dia 30 de abril, morreu o meu pai, meu melhor amigo.
Não, não vou chorar aqui. Já chorei demasiadamente nessa semana, de saudade.
Hoje estou me lembrando o quanto ele amou as pessoas, e como era alegre e bobo, como eu.
Suas últimas palavras foram uma recomendação para o cuidado com minha mãe. E, na última vez que conversamos, ele, aparentemente bem, elogiava a beleza da jovem médica que o assistia.
Foi um homem que amou intensamente, que repartiu tudo com os outros, suas músicas, seus sonhos, as viagens que adorava, as fotos que colecionava. Foi um homem humilde e que chorava com facilidade, diante de sofrimentos que não conseguia minorar.
Ele me ensinou o respeito por todos os seres e me ensinou a amar as pessoas e os bichos. Ele punha comida escondido de minha mãe para os gatos ladrões que teimavam em invadir a cozinha de fora. Ele tinha um jardim e conversava com a avenca que fora de sua mãe e ainda hoje está viva e linda. Amava cada flor que nascia, principalmente aquelas feias e tristes.
Ele comprava todos os discos de chorinho e violão para mim e me acordava aos domingos para assistir o programa de chorinho na TV Senado. Todos os domingos.
Ele gostava de bolo com leite e sempre se lembrava da minha filha que mora no exterior, comentando que, para ele, uma das maiores alegrias, era vê-la na cozinha assando bolos.
São tantas as pequenas lembranças, essas bobagens que fazem uma vida e que ficam sempre dentro da gente, doendo, doendo.
Meu pai era muito simples e, como as crianças, alegrava-se com as coisas mais sem jeito e sem lógica. Seu prazer era a alegria dos outros, dos filhos, netos, todos. Sempre tinha uma piada apropriada para o interlocutor. Tantas vezes, boba, boba e contava rindo incontidamente. Quanto mais boba, mais ele ria. Ele era doce. Como era doce! E me ensinou a doçura de ser.
Morria de rir e de orgulho ao me ver cantando, sem saber que canto muito mal.
Como disse alguém, ele foi um servidor. Servia para iluminar nossas vidas, servia para doar seu amor pelas pessoas, servia para trazer um chá com bolachas em noites frias e para consolar os feridos de todas as batalhas diárias. Servia até aos seus amigos mortos, nos últimos momentos nesta terra, a quem fazia questão de reverenciar e acompanhar.
Ele foi um servidor do amor imenso e esparramado para todos e por todos.
A saudade que sinto dele não é triste.
É só a falta que sinto de sua alegria, sua juventude e do seu amor.

Imagem: Nicoletta

quinta-feira, abril 27, 2006

Por acaso


Queria escrever coisas alegres e contar dos meus risos, mas como? Ninguém me manda nem umas margaridas baratinhas. Mas, flores eu as invento para mim, como presentes.
Queria ser intelectual e contar sobre umas 300 dúvidas existenciais chiques que deixassem todos boquiabertos, mas nem sei o que são dúvidas existenciais.
Eu só sei o que ser sozinha e só ter eu mesma para dividir o meu amor tão inútil. Eu só sei o que é perceber, quase por acaso, que há enganos e que eles doem.
Escuros, claro-escuros, é assim a vida.
Eu queria ser poeta e encantar com minhas contradições em rimas ricas, em decassílabos, talvez. Hoje aprendi que poesia em decassílabos é, na verdade, uma música disfarçada. E fui ler o poeta em voz alta para ficar alegre com essas músicas que ele escreve e me inundar. Não adiantou nada, porque me perdi nas palavras e esqueci a forma. Não posso com músicas, não posso com nada.
Queria me esconder no mato ou virar criança.
Queria tanto, tantas coisas eu queria só para disfarçar esse meu querer impossível.
E nada é, nada será.
Tudo continua como sempre, sem margaridas pobres, sem dúvidas, sem rimas, sem melodia disfarçada de poema, sem mato, sem ser criança.
Sem você, tudo é nada.

Imagem: Patton Wilson

terça-feira, abril 25, 2006

Ele


Foi uma nuvem em tarde de verão que se desmancha pelo céu e, no entanto, é quente e nos provoca a acompanhá-la para sempre.
Foi um canto de pássaro desconhecido por entre os troncos e ramos enraizados na ilha da minha solidão.
Foi bom e ruim, como uma surpresa na noite, um uivo de lobo e seus olhos amarelos.
Ele, um pirata, arriou minhas velas, estendeu-se sobre meus tesouros e, como o mar, encapelou-se em meus abismos.
Depois, corsário sem memória, querendo-se mar, foi-se lentamente, sem me levar.

Imagem: Éderson da Silva

domingo, abril 23, 2006

Chuva


Uma chuvinha fina e fria lá fora e eu aqui sob o edredon, uma preguicinha boa e sonolenta, meio sonhando, meio me lembrando de você e dos beijos que só sonho, sonho. O oceano tão pequenino diante dessa distância, da falta que sinto do que nunca tive, só sonhos, só sonhos. Olho a chuva e imagino coisinhas bobas, como enrodilhar-me em seu peito e beber chocolate na mesma xícara, seus beijos expulsando o frio por nossa janela. Seus pés aquecendo os meus. Essas pequenas felicidades que são sonhos, só sonhos. O que me embala e aquece é o desejo. E esses sonhos que sonho.

Imagem: Paul Cornoyer

quinta-feira, abril 20, 2006

Declaração de amor

Declaro para todos os fins que você é um raio de sol e entra abruptamente por nuvens chorosas, rompendo águas, clareando a escuridão em que me enterro e arrancando risos e ais.

Declaro para todos os fins e começos e meios que você é a primavera e suas essências, seus cheiros e luzes e deslumbramentos coloridos incendiando meus olhos e perfumando meu corpo.

Declaro para as gentes que você é um bicho novo e impaciente a me exigir inteira e constante como um filhote faminto a sugar o seio da vida.

Declaro aos deuses que esse arrebatamento com que me toma e se compraz, se deleita e se sacia bem que poderia ser sem mais tarde, sem nunca, sem jamais, sem fim.

Declaro a você o meu amor, você que é luz, perfume, alegria e paixão.

terça-feira, abril 18, 2006

Teatro

Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
C. D. de Andrade

Ando por aí, solitária na vida e me entrego.
Meu coração é como uma criança em busca de um brinquedo.
Julgo encontrá-lo em todos, acredito que é aquele o brinquedo
que me encantará e quero tomá-lo, guardá-lo em mim e para mim.
E sempre é névoa.
E sempre é espetáculo, de circo, no início. Depois drama, monólogo, nada.
Cega de sede, crio miragens, chego a tocá-las em sonhos e mais nada.
Às vezes, raios de luz me aquecem, inconstantes e belos.
E, se vão, como sempre vãos.

Imagem: Thiago Rodrigues

sábado, abril 15, 2006

Amar sozinho


O que eu sou pra você não é real.
O que eu sou pra você você não precisa
(Volcano, de Damien Rice).
Amar sozinho é andar sempre à margem das coisas, na sombra dos risos alheios, colhendo aqui e ali indiferenças, sem nunca enxergar os olhos de quem se ama porque estão sempre em outros olhos e os meus de águas tão acostumados, velam-se.
Amar sozinho é estar nu entre espinhos e se entregar a sonhos angustiantes pela ausência, antes pesadelos de que não se acorda nunca e que fazem das noites, vazios insones cheios de desejos inúteis.
Amar sozinho é deixar de ser.
Amar sozinho, um trapezista, a se lançar em abismos sem nenhuma esperança de qualquer braço a aparar meu destino e nele tecer redes de amor.
Imagem: Wolcott Henry

quarta-feira, abril 12, 2006

A páscoa que quero para meus amigos


E se a páscoa vier assim com um desejo pequenino de só olhar para aquela pessoa insuportável e dizer bom dia?
Se vier sem imensas pretensões de ressurgirmento, de renovar tudo?
Se vier só com um coração meio bobo e momentaneamente aberto para coisinhas carinhosas, como escrever um bilhete dizendo que está com saudades?
Uma páscoa com ovos de chocolate e sementes quase invisíveis de amor por essa humanidade inteira que só quer ser feliz?
Se for uma páscoa sem pé nem cabeça, sem ovos, sem coelhos, sem nada, sempre se pode dar uma olhada lá por dentro da gente e encontrar uns pedaços de infância, ou resquícios de amor adolescente ou vozes de amigos que continuam música em nossa cabeça.
Eu sou muito pequena para páscoas triunfais, mas renasço a cada dia, a mesma ou outra.
Por saber que isso é possível, desejo-lhe a sua páscoa, do seu jeito, imensa ou mínima, seja lá como for e com o meu bilhete dizendo que sempre sinto saudades de você.

segunda-feira, abril 10, 2006

Eu e você


São tantos os desencontros entre nós. É sempre assim, nunca estou ou você ainda não veio. O meu telefone está ocupado ou um andante ou um triunfo em alto volume o impede de ouvir meu chamado. É sempre assim, já me fui quando você chega ou nem vim e você me busca. Precisamos de uma esquina, um Almódovar em tarde quente ou daquele chá sem gosto e sem cor, mas tão chique com biscoitos que se esfacelarão em meu colo e você me pedirá para ali prová-los. Precisamos da praia e da areia nos seus cabelos e nos meus, de rolarmos como crianças sem sombras nos olhos. Preciso que me chame mais mil vezes e irei sempre encontrá-lo para me perder em lençóis obscuros e no seu peito e demorar anos-luz para encontrar o caminho de volta porque depois que suas mãos devassarem todos os meus vãos e planos e colinas não haverá mais estrelas que me guiem a não ser para você.

quarta-feira, abril 05, 2006

Arranhões



Não sei do amor porque é água tranquila ou inundação. Afogo-me nessas circuntâncias e me desmancho célere. Mas ondas recuam e fico, só arranhões da areia que nem sabe de nada porque não estava ali quando abracei as águas. E estas, quando voltam, são outras, o mesmo mar e outras águas. Salgam minhas feridas e mais uma vez me afogo, entreguo-me. O mesmo mar, o mesmo. E eu, cada vez mais ferida porque só fica em mim a rispidez da areia.

Imagem: Marco Paulo

domingo, abril 02, 2006

Atriz


Queria ser poeta e não apenas escrever essas incoerentes palavras e os versos mais desconjuntados. Pobre e previsível expressão do meu sangue, da minha vontade e desses carinhos guardados sob as sete chaves da sua distância e da minha saudade.
Queria saber escrever uns versos descrevendo como você abriu meu espetáculo e me fez estrela, bailarina de sonhos, dançando em seu peito.
Queria dizer do depois, quando as cortinas se fecharam e você, como as luzes de camarim, clareou meus seios e, astro, cantou as canções das carícias, allegro.
Mas, minhas palavras são um riachozinho modesto e quieto, indo, indo talvez no seu rumo, sem nunca saber se o alcançarão.

Imagem: Degas

sábado, abril 01, 2006

Chão

Aonde irá esse andarilho que mora em mim?
Tento me afastar da tristeza, ele insiste em voltar a esses desvãos.
A tristeza voltou e não sei quem é o culpado? Serei eu ou ele?
Eu que acreditei que a estrada em construção seria o chão dos meus pés hesitantes a caminho de Pasárgada? Mas é tão frio, está tão longe de mim. A estrada se interropeu bruscamente e perdi o chão. Nem sou anjo, não posso voar, não posso mais sonhar porque tenho que buscar um lugar onde repor meus pés feridos, assim como minha alma. Será ele construtor de ilusões? Ou serei eu, perene visionária?

Imagem: Sérgio Rodrigo