quarta-feira, janeiro 31, 2007

Ao sol

Quer saber? No momento em que vivo, vivo demais. E a noite não cabe em mim e nenhuma chuva me alcança, nem lábios de morder, nem serenatas. Não há noite, não vejo estrêlas. Ando ao sol, em lutas. Meu cavalheiro, à distância protege-me os flancos e toca-os, em quente ternura. Incontida, desmonto fases, faces, lanço ao fogo todos os medos. Minhas máscaras estão cegas, não mais me servem.
Mas os pedaços de fantasia guardados, retalhos de antes, abrem alas em meus próprios pedaços. Despeço-me de qualquer dor, embrulhada nos mantos de Vênus.
Neste dias, vivo demais.

Imagem: Alfred Gockel

terça-feira, janeiro 30, 2007

Construção


Farta de concordância
desato o verbo e
exijo que as crianças
reconstruam o mundo
com a argamassa
do sonho e do riso.
Refaçam-se as metáforas
povoem os livros de flores
e enxotem as palavras
de ordem.
Acabem com os sujeitos ocultos
da guerra e seus objetos mortíferos.
Ressuscitem a alma das crianças
para chorar outras crianças mortas,
enfim inatingíveis por obuses
e por absurdos cruéis dos
monstros carnívoros,
senhores das frases duras,
das armaduras.
Procurem outros tempos
em que os verbos se conjuguem
no presente e no futuro,
traduzindo-se em esperança.
Apaguem as orações radicais
e em seu lugar deponham as armas.
Destruam as onomatopéias malignas
das balas tracejando em corpos
infantis e colorindo de vermelho
a infância e a juventude.
Desmontem os mísseis,
trocando-os por cartas de amor,
de amizade, de perdão.
Acendam a luz nos olhos
dos velhos, cansados de
procurar a mensagem
dos deuses em sangue e lágrimas.
Basta de antônimos,
queremos igualdade de termos
queremos construir juntos
os versos livres,
os versos límpidos da
PAZ!

Blogagem coletiva, coordenada por Lino Resende,
pelo Dia da Não Violência, 30 de janeiro

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Oscilar


Um pássaro, um pêndulo.
Meu coração vive assim,
de ar em mar, da dor à cor
dos seus olhos distantes.
Lembro a árvore e o vento que a toca,
ora gentil, ora curvando-a
em contorções de parto.
Não, não se vá mais, nunca mais,
vento dos meus dias.
Os mesmos deuses que escrevem os seres dentro de mim,
desenham sua chegada em meus sentidos sonâmbulos à sua espera.
Não se vá das minhas mãos.
Antes arranque meus sonhos, meus braços de guardá-lo.
Arranque a árvore, antes de ir-se, vento inconstante.
Mas não, não se vá.
Fique em mim, meu presente maior que o mundo.

Imagem: Yakovina

quinta-feira, janeiro 25, 2007

Mutação


Hoje sei que se fosse poeta e suas asas, saberia mais,
desafiaria o abismo entre o sonho e o acordar.
Depois de me aventurar nas grandezas alheias
e sentir o que sente o afogado no fim de todos os momentos,
compreendo o que ficou em mim, depois do amor.
Sei agora que não importa o imenso mar ou a altura do muro.
Aprendi que relógios não mais existem ou não importam.
Aprendi das mutações, da insustentável permanência
das coisas que queremos eternas.
Agora sei que, sob a melancolia da ausência,
sem precisar de lugar, hora, ou caminhos,
artesã de sonhos, continuo tecendo meu amor
porque, de todas as impermanências,
anda aqui por dentro a certeza de ainda te amar.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Permanência


Eu o deixo ali,
jardim antigo que insisto em cultivar.
À distância, mergulho em suas teias verdes,
sementes e folhas mortas.
Deixo-o no canto das minhas lembranças
em meio aos verbos que arrancou de minha boca, ecos de feroz ternura.
Deixo-o em meu peito,
espinho e bálsamo dessas feridas vermelhas
abrindo-se em velas de mal navegar.
Eu o deixo, vela de promessa em altar
do deus perverso dos solitários
e suas mil mãos de lembrar.
Deus de nunca se contentar.
Deixo-o trancado no escuro,
nos armários onde escondo
meus vestidos de amar.
Mas você volta sempre, assombrando meus olhos,
perfume derramado em meus vasos nus.
Volta sempre, o barco de me levar.

Imagem: John W. Watherhouse

segunda-feira, janeiro 22, 2007

Reflexo


E eis que me encontro, meu Deus!
Neste velho espelho que sorriu comigo,
e suas marcas de lágrimas desarvoradas, eu me encontro.
Mas, quem me fita?
Quem assim cansada, desvia os olhos de mim?
Por que se espanta com todos os dias que passaram
por este rosto estranho, em tantas faces de se ver?
Quem é essa mulher que, despida dos medos comuns,
permanece frágil,
e hesita nas pontes para o azul da vida?
Velho espelho, velho, antes côncavo de ilusões,
não mais enxerga a menina, as anáguas
brancas e os sonhos rabiscados em folhas soltas.
Velho espelho opaco de tanto tempo!

Imagem: Washington Maguetas

domingo, janeiro 21, 2007

O que sou


O amor, com suas reticências, veio e me transformou no que não sou.
Princesa de conto de fada, estrela e flor, bailarina de desejos, deusa e bacante.
Mas nada disso me descreve.
Em meus espelhos, outras imagens, esboços do que poderia ter sido, não fora a felicidade grande demais para meus olhos meio cegos.

Sou antes, a caminhante sozinha em velha estrada esquecida, de pés cansados, de coração cansado, indo ao encontro de um abrigo perdido em algum canto da vida.

Sou mais uma mulher enroscada em suas aflições de sonhos irrealizados , que mesmo assim, insiste em sonhar.

Sou a errante que, apesar do árido trilhar, vive o ciclo das águas, rio, nuvens de chorar.
Nem deusa, nem fada, nem bailarina, sou aquela que perdeu o ritmo dos dias e o rumo, de tanto amar.

Imagem: Luís Ventura

sábado, janeiro 20, 2007

Você partiu antes


Os relógios de muitas manhãs ainda dormiam e eu imaginava tantos sóis por nascer entre meu corpo e o seu, recolhendo lençóis e beijos urgentes.
Havia tantos alardes!
Mas você partiu antes e me fez perder as horas.

Ainda vai amanhecer todo dia. O sol, de sua distância, mal tocará minha pele nua, minha boca fria. As horas, em confusão, não mais saberão se o dia tarda nem onde foi o calor já antigo.

Você partiu antes e toda noite amanhecerá muda.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Saudades de Elis

BLOGAGEM COLETIVA PROPOSTA POR VERA FRÓES,
NO ANIVERSÁRIO DA PASSAGEM DA IMORTAL ELIS REGINA

Não, não haverá outra como Elis.
Ninguém mais se derramará nos palcos e estúdios com a alma na boca, na voz encantada.

Ninguém será tanto, romântica, rockeira, sambista, blueseira, etc., etc. Ninguém cantará como Elis, as dores e o medo da época mais negra da nossa história. A Baixinha se tornava imensa ao se entregrar à canção, qualquer que fosse. E ainda havia os que a criticavam por essa entrega. Ah! cegos, surdos, insensíveis! Suas vozes sumiram. Elis continua e continuará para sempre.

Ninguém pescará pérolas no mar da música como Elis, que trouxe tantos e tantos excelentes compositores e cantores para a luz.

A energia dessa pequenina mulher e a beleza do seu canto são únicos e ficarão sempre ressoando como vozes de anjos em nossas mentes saudosas.

Ave Elis, enorme, gigantesca cantora, menina pequenina dos nossos amores, ave!

Saudades!




quarta-feira, janeiro 17, 2007

Oração dos sozinhos (refeito)

Ah! Menino, o que sabe de ausências
e como irá consolar os sozinhos?
Ainda tão novinho, Menino, nunca sentiu a voz ecoando em paredes indiferentes, nem sabe do corpo frio, da alma fria.
Como irá povoar os espelhos
com a única e sempre mesma imagem?
Menino, Menino, o que sabe de pés imóveis,
sem rumo, sem destino?
Menino, já viu mãos vazias?
Já viu essas mãos inúteis?
Reconhece lágrima, Menino?
São esses mares salgados, povoados de dores que,
ora mansos, ora balbúrdia, molham todos os travesseiros
de todos os sozinhos neste mundo.
Não, não queira saber, não queira.
Menino, você só sabe do amor e é impossível lhe explicar os sozinhos.
Impossível explicar a fome a quem é maná.
O que posso lhe pedir, Menino, se nada sabe do pedaço que me falta?
Não, não quero nada, não peço nada.
Olhe para outro lado, busque nas festas onde, sob luzes coloridas,
outros iguais a mim escondem sua solidão
em verde, vermelho e os dourados fingindo sol.
Busque em outras festas onde não estarei
porque perdi todas as fantasias.


Imagem: François Boucher

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Eu e você

Meço a distância, não em quilômetros de terras ou mares, mas pelo rumor dos seus murmúrios de amor e por estas nuvens clarinhas que mandou desenhar em meu céu.
Seus passos invisíveis, eu os sinto vindo, vindo como flores desmanchadas que dançam em minha direção. Sua chegada me transformará em abelha, em vaso, em fios de atar.
E seremos constelação de nome misterioso, desafiando os cegos, desfiando segredos noite a dentro. Tatearemos nosso espaço, em constante namoro e, sem senso, abandonando órbitas, vamos brincar de cometas desmiolados.
Abelha, em ânsias de mel, sinto seus passos.

domingo, janeiro 14, 2007

Sonhos


Sonho com tua volta para abrir teus segredos em deslumbramentos dos sentidos.
Sonho com teus aromas que parecem dormir em minha pele,
esperando que venhas despertá-los com a mais tênue carícia.
Sonho com tua voz, música de me transformar em mosaico, turbilhão.
Sonho com teu beijo, com a fome dos desde sempre sozinhos, e sua sede.
Sonho com tuas mãos (uma quase dor surge em mim)
e os largos, profundos carinhos que tatuarás em meu corpo.
Acordada ou semi-desperta, sou só espera.

Imagem: Matisse

sábado, janeiro 13, 2007

Rimas

A Poeta chamou minha atenção com a bela música: “pra que rimar amor e dor?...”
Bem que tentei, Poeta.

No meu vasto dicionário de sonhos, busquei tantas palavras para construir outras rimas e fazer do meu amor um poema único, para encantar um único leitor e envolvê-lo em delícias e delírios.


Escrevi todos os versos do meu amor
colorido como olhos de criança.
Escrevi em letras grandes "Eu te amo",
rimando com beijos e esperança.
Em frases bobas de felicidade, acendi minhas luzes
para iluminar o meu amor
e me alimentar com seu brilho.

Desculpe, Poeta, minhas rimas são pobres
e agora só posso rimar "amor e dor".
A música abandonou meu caderno de poemas.
Nele só vejo as linhas azuis, limpas, nuas.
Aqui e ali, ao invés de rimas, lágrimas.

Imagem: Mose Bianchi

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Em pedaços

Há quem ame para sempre.


Há quem derrube os espelhos
e deixe o amor aos pedaços, refletindo-se, vazio,
em sonhos quebrados.


Há quem ame apenas.
Continuamente, refazendo os reflexos,
as mãos em sangue, a alma em sangue,
juntando cacos até ver refeita a imagem
e suas cicatrizes.

Imagem: Alfred Gloekel

terça-feira, janeiro 09, 2007

Sombra

Uma lâmina cortou meus sonhos
e sangro sombras que se estendem,
lençol, véu,
manto a me cobrir.
Nenhum olho me desvenda.
Nenhuma mão me resgata.
No fundo de mim,
esfolo a pele e sangro.


Imagem: David Jireux

domingo, janeiro 07, 2007

Um dia e vário amor



Tenho a alma imprudente, que se entrega a devarios, ilusões
e me obriga a amores vários durante o dia.
Amanheço sonhadora e meu amor é penumbra
e flancos macios de sono.
Meio o dia, faminta, meu amor é boca de devorar,
sal e língua queimada do suor riscando o corpo.
Anoiteço, argila de mágico manusear,
às vezes rude, também mole de moldar
nas mãos que me desenham e constroem a noite.
Madrugadas são de sonhar ou velar.
Vela, meu amor vela e me ensina insanos beijos.
Qual garimpeiro, arranca da garganta meus sonhos
disfarçados em sussurros
até que todos os véus se rasgam
e impudentes e plenos,
abrimos o dia com o sol nos dentes.

Imagem: Patrícia Vilela

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Aqueles que amam

Há sim, esperança para aqueles que amam e só para estes.

Aqueles que amam pertencem à estirpe dos deuses: desmancham nuvens, adivinham desejos, dispensam palavras.

Aqueles que amam são capazes de afastar de si a impotência que rege os egoísmos e se entregam, radiosos em sua coragem de mergulhar em outros sonhos, diferentes dos seus.

Aqueles que amam exercitam o cuidado, inclusive consigo e buscam a perfeição para encantar o outro com a beleza do que é simples.

Aqueles que amam sabem o que deve ser esquecido e se lembram de delicadezas, de doçuras imperceptíveis, de silêncios.

Aqueles que amam são como baús de piratas e seus imaginários e quase sempre intocados tesouros.

Imagem: Claude Théberge

quinta-feira, janeiro 04, 2007

De borboletas e pipas




Porque mesmo agora, há uma criança brincando em mim e sem me saber ainda casulo, a borboleta foi meu símbolo no ano que se foi.



Porém, esse meu último ano foi marcado por pipas. O famoso autor em seu livro disse que as pipas têm o poder de fazer o pensamento voar alto, tão alto quanto elas. "Foi isso mesmo que se deu comigo", como diz a música.

Borboletas e pipas e seu frágil existir se assemelham aos dias, aos meus dias, tênue emaranhado de luz e melancolia, de medo e esperança.

Borboletas e pipas são sim, breves e, no entanto, cumprem seu destino de colorir e enfeitar o horizonte.

Assim tentei ser, livre e colorida, desfazendo paredes, em constante descortinar.

As palavras, minhas asas.

Imagem: Cris Johns